terça-feira

Meu Maior Orgulho


     Eu me via em um belo campo, o dia ensolarado deveria me deixar feliz. Memórias passavam pela minha mente, conforme meus olhos vagavam pela paisagem descampada, acompanhada por um rio raso de águas cristalinas. Quantas vezes brincamos ali, não é? Me lembro onde mamãe sempre sentava, nas raízes da grande árvore em cima do morro. Era pra lá que meus pés me levavam. Dali eu tinha uma visão privilegiada de todo o terreno. O terreno que hoje estava cheio de flores coloridas, anunciando a chegada da primavera. A nossa estação.

     Me sentei então nas mesmas raízes, sentindo o vento bater leve contra meu rosto, levando algumas mechas de meu cabelo para o lado. Deixei meus olhos se fecharem e me apoiei no tronco da velha árvore, sentindo uma lembrança tomar conta de mim. Mas faltou uma coisa. Faltou você ali para me abraçar.


     Éramos nós ali correndo, fingindo ser crianças novamente. Tínhamos todos os campos para nos divertir, ninguém para vigiar. Um amor para perseguir.

     O chão estava coberto por um tapete de folhas em tons quentes, e as árvores com seus galhos pontudos quase secos, esperando pela neve, esperando pelo momento de dormir. Nós sempre acompanhávamos a chegada do inverno, era um dos momentos mais legais do ano. Onde era mais confortável dormimos juntos. Mas ainda não tinha chego a hora de ir para cama. Era uma bela tarde, até.

     O vento estava ficando mais forte, mas nós ainda corríamos um do outro, sem nenhum motivo. Chegamos ao bosque desfolhado, e eu fui inventar de subir numa das árvores. O resultado fui eu de costas no chão e um talho em meu braço, com sangue escorrendo. Levantei-o para ver o estrago e comecei a rir. Tom se assustou.

     “Bill!” Tom gritou alto atrás de mim.

     “Calma Tom, só me cortei.”

     “Só me cortei. Cortou o braço fora, isso sim. Vou chamar a mãe.”

     Ele foi, mas eu não iria ficar ali esperando. Me levantei e também voltei, o seguindo de longe. As roupas não o deixavam correr rápido, era divertido.

     Caminhei lentamente, segurando o braço longe da minha camiseta, para não ensanguentá-la mais, vendo umas escuras nuvens chegarem ao horizonte. Me desviei um pouco do caminho da casa para lavar o corte no rio. A água gélida me deixou arrepiado e com o braço ardendo demais. Voltei a andar, logo encontrando Tom, que vinha em minha salvação. Não pude deixar de sorrir com esse pensamento.

     Me apoiei nele enquanto mamãe pegava meu braço e examinava.

     “Tá bem feio, hein filho.”

     Concordei.

     “Vem, vamos pra casa tratar disso. Tom você vai poder fazer o curativo? Tenho que preparar o lanche.”

     “Claro.”

     Chegamos e eles logo se ajeitaram. Eu sentado na cadeira, Tom na minha frente com a caixinha de primeiro socorros – pra mim, um exagero – e a mamãe arrumando a mesa e fazendo waffles.

     Tom fez tudo direitinho, rindo de mim quando eu soltava pequenos gritinhos pela ardência que o remédio causava em meu braço. Logo fez o curativo, mas mamãe ainda não tinha terminado os waffles. Nos sentamos nos bancos do balcão, em frente a janela. As nuvens escuras agora tomavam conta do céu, e não demorou muito uma forte chuva caiu delas. Tom aproximou seu banco do meu, fazendo um rangido de doer os ouvidos, e me abraçou. Era incrível como eu me sentia seguro em seus braços.

     “Pega-pega assassino o de hoje...”

     Dei de ombros. Não estava com vontade de falar, e ele entendeu. Apoiei minha cabeça em seu ombro, e assim ficamos, até Simone nos chamar.

     Quando chamou, fomos famintos para a mesa e devoramos rapidamente os deliciosos waffles. Os da mãe eram maravilhosos, mas Tom teimava em preferir os meus. Um sorriso surgiu por meu rosto, e olhei para ele, que me observava atentamente. Deu um lindo sorriso em resposta.


     A lembrança boa terminou aí, quando várias imagens agora se misturavam, em cortes.


     A chuva.

     A corrida.

     Os espirros.

     O sangue.

     O desespero.

     Eu dando o telefonema; abrindo o portão para a ambulância entrar em seguida. Lágrimas já me invadiam, só pelo fato de eu ter meu irmão em uma maca, doente. E ele ainda se importava comigo e com o meu braço, de onde escapa um filete de sangue pela atadura, pelo fato de ter me movido demais.

     Fomos para o hospital.

     Não entendia nada do que o médico falava. Dizia milhões de palavras para as quais eu precisaria de um dicionário para compreender, mas eu tive que perguntar para saber como o Tom estava. Me arrependi. Me vi correndo, passando pelo médico e indo sala adentro, sem máscara nem nada.

     Minhas lágrimas voltaram a cair, ainda mais pesadas do que antes. As palavras do médico ressoavam em minha mente. Foi um ataque muito forte. Ele... ele não resistiu. Não quis acreditar.

     “Tom.” Esperei burramente por uma resposta. “Tom!” Gritei. Mas ele não me respondeu. Como eu fui estúpido, meu Deus. Burro, burro, burro. Ele tinha esse problema, e era só disso que ele precisava para partir. De uma chuva. Que merda.

     Mesmo sabendo de todos os perigos, selei nossos lábios longamente. Nunca mais teria a oportunidade mesmo.

     Coloquei a mão sobre seu coração, como um último ato de despedida.

     “Eu amo você.”

     Uma das enfermeiras pediu educadamente para eu sair, e me acompanhou até minha mãe. No caminho, me obriguei a parar de chorar. Ele havia me pedido isso na ambulância. Não chore por mim Bill. Lembre-se sempre que eu lhe fiz feliz, não que lhe fiz chorar. Eu assenti, mesmo sabendo que não seria capaz de cumprir. Nunca mais tornaria a ver seu sorriso.


     Lembrar disso não era agradável, mas era necessário. Eu precisava aceitar. Já fazia seis meses que eu não o tinha mais ao meu lado, como achei que sempre teria. Eu não o tinha mais, não importa como. A única coisa que eu poderia fazer por ele, era chorar. De tristeza, de felicidade. Não importa. Chorar por você é meu maior orgulho. Eu tinha lhe prometido não chorar, mas você não me viu cruzar os dedos.

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