Tuesday
- September, 10th
E vai ser difícil
te contar... afinal, você é ainda mais importante.
Mais importante para
mim e para Bill do que nossos amigos...
Talvez não saia tão
real quanto foi, ou com tantas dores. Alguma ideia do que aconteceu
você já sabe, como os médicos contaram...faltam apenas os
detalhes. Os horrendos detalhes.
Não sei se vou ser
capaz de contar todos, de escrevê-los.
Acho que é mil
vezes pior que lembrar. Imagine – ou melhor, nem tente – viver
aquela merda.
Você
não vai gostar de saber o que ele sofreu. Pelo meu irmão, eu aviso.
Perdido.
Era
praticamente assim que eu me sentia. Não sabia mais o que era dor, o
que era amor, o que era paz. Podia receber qualquer ajuda... eu não
queria falar! Queria falar com Bill. Aqueles detalhes insuportáveis.
Pensei
seriamente em me matar. Só que não fui capaz de me levantar para
isso... são maneiras tão simples, de um humano perder a vida... uma
surra pode servir.
Jake
já veio umas trinta vezes atrás de mim. Admito, nunca fui muito com
a cara desse metido, mas Bill sempre gostou dele. Na terceira (leia
trigésima terceira) vez que o mandei embora, Bill apareceu. Me disse
três palavras... e não foram eu te amo. Ou estou sentindo saudades.
Não, não foi nada disso. Foram elas: Jake merece respeito.
Fiquei
assustado. O rosto era sério, vivo. Não sei se foi alucinação...
imaginação. Tão real! Tinha um pouco de admiração também.
Tanto
faz. Só lembro que isso realmente mudou minha vida. Quase um
renascer. A mãe estranhou quando me viu na mesa do café. Ainda não
falava muito, mas quando dei um bom dia tristonho, ela se animou.
Ela
começou a me encher de perguntas, e quando pensei em Bill, eu sorri.
Ela falando se eu ia voltar a ir em festas, se ia aparecer em casa
com garotas de novo... Eu neguei pacientemente.
Comi
muito pouco, e quando ela perguntou o que eu queria fazer, respondi:
quero falar com o Jake.
Não sei se ela achou que eu continuava perdido... ou se agora estava
louco.
Estou desde aquele mês tentando criar coragem. Nunca entendi o que
Simone achou que eu queria fazer por causa daquela conversa... ela
não mexeu um dedo para me ajudar, apoiar. Daí eu me perdi de novo.
Que eu me lembre, ela gostava de Jake. O moreno de olhos verdes,
quase castanhos claro, namorado de Bill.
Ok. Quando ele se assumiu gay, não foi a coisa mais simples de
aceitar... mesmo que eu tenha sido o primeiro a levar na boa. Sério.
Me lembro quando ele levou uma garota, há muito tempo, e a
apresentou sendo sua namorada. Tão fofo... meu irmão. Fofo, fofo
mesmo ele estava na nossa conversa depois... todo apaixonado, tão
lindinho... a bochechas rosadas, o olhar perdido na imagem da garota.
E depois, ele me aparece com um homem! Já não bastava eu de homem
em casa, é...
Tá, é verdade. Eu tinha certos ciúmes dele. Antes, o único a
quem Bill abraçava com todo o amor que podia demonstrar era eu.
Depois, tinha mais um para dividir. E, olhem só. Eu estava a caminho
da casa dele, embaixo de um grande guarda-chuva preto, protegido da
chuva fina e torrencial, que entristecia qualquer paisagem bonita de
fim de outono. O dia parecia estar querendo combinar com meu estado
emocional, depressivo.
A casa dele ficava em uma rua interminável, quase na floresta. Era
quarteirão após quarteirão e o caminho parecia só aumentar. Foi
perto de uma hora de caminhada que cheguei na bendita casa, branca,
cercada de árvores e com um caminho até a calçada escorregadia.
Gritei o nome de Jake, já que não vi sinal de muro para poder
segurar uma campainha.
Ele estava assustado quando abriu a porta para mim e me convidou
para entrar.
“Tom.. nunca esperava te ver aqui.” Completou, indiferente.
“Eu também nunca esperava ter que estar aqui.” Ergui uma
sobrancelha, mania bem particular de meu amado irmão. Jake riu.
Jake não era mais alto que eu. Não tinha lábios mais carnudos que
os meus. Tinha o corpo praticamente como o meu. O cabelo era curto,
num estilo bem tradicional. Só que apenas quando fui olhá-lo por
dentro, é que entendi porque Bill o amou tanto. (Não mais do que a
mim. Hehe.) Sincero, calmo, humilde... com uma paciência enorme –
e enormemente necessária. O típico bom rapaz, sem tantos mimos, mas
cheio de amor para dar. Daqueles que sempre valem a pena lembrar como
melhor amigo. Disse-me para sentar. Não fiquei observando a
sala, fui direto ao assunto.
“Como vai a vida... Jake?” Não dá para chamar de cunhado. Não
mais. O suspiro que ele deu já mostrou uma grande perspectiva de
como estava sendo. “Não tem vontade de falar?” Fez que não.
“Você também foi me visitar, não foi?”
“Sim. Queria saber sobre o que tinha acontecido... mesmo que eu
estivesse muito fragilizado. Fui várias vezes. Até que você me
tocou da casa...” Deu uma risadinha ao lembrar. “Sua mãe disse
que não era mais para eu aparecer, que você não queria nada mais
comigo. Daí eu parei. Mesmo que ainda tinha muita vontade de ir... a
sua casa me lembra muito dele. É bom.”
“Eu sei, Jake... me lembra dele demais. Dói.”
“Você ficou depressivo. Eu estava preocupado... na última das
últimas vezes, dei uma leve batida na sua porta e a abri. Vi você
sentado, em lágrimas, conversando com o vento! Deixei a porta como
estava, e saí.” Foi minha vez de rir, mesmo que soasse
completamente sem graça. Eu estava conversando com Bill.
“Ainda estou depressivo. Mas quero ver se botar para fora me livra
deste tormento. Bill me disse que você merecia respeito e que
gostaria de saber o que aconteceu com ele, em todos os detalhes.
Estou aqui para isso.”
Ele me olhou como quem está em dúvida, se quer ou não saber. Os
olhos sempre intensos, castanhos por fora e quase amarelados perto da
pupila, esverdeados, já não tinham a mesma alegria de antes. Mesmo
assim era algo complicado olhar para eles, sempre tão fortes,
sinceros, quase hipnóticos.
“É forte. É horrível.” Alertei.
Comecei. Com todos os detalhes que conseguir lembrar. Só não
precisa... descrever tudo demais. Tenho medo de ficar traumatizado
também.
“Já aviso que nunca mais você vai conseguir esquecer as imagens
que fez com essa minha narração. Essa é a pior notícia.”
“Tudo bem. Acho que estou preparado. Pode começar a contar sobre
a morte de... Bill.” Hesitou para falar o nome... é, deve
ter marcado mesmo.
É horrível só pensar em lembrar. Falar em morte, começa a
memória.
Os gritos. O grito
desesperado de meu irmão. Ele mal tinha acabado de me telefonar,
pedindo para ir buscá-lo, pois estava com medo de voltar sozinho. Em
que festa ele foi se meter, Jesus! Alguns palavrões e xingamentos,
vindo de várias vozes me indicaram o caminho. Era um beco, e ainda
por cima, lá estava ele, bem embaixo da luz do poste. O problema?
Dois homens estranhos o seguravam, e outros três o rodeavam. Falavam
coisas horríveis. Quando ia começar a correr, tentar fazer alguma
coisa – nem passou pela minha cabeça ligar para a polícia, como
eu deveria ter feito –, fui segurado, com bastante força. Ao
tentar resistir, levei uma joelhada nas costas, que me fez gemer de
dor.
“De tudo o que ele
tinha vivido, nada nunca tinha sequer chegado perto de se comparar a
isso. Como estávamos a maior parte do tempo juntos, ninguém queria
mexer conosco, apenas uns comentários perfeitamente ignoráveis,
como você deve lembrar. Se ameaçava ficar pior, nós saíamos dali
e nada acontecia. Até que...” Apertei a ponte do nariz, fazendo o
impossível para segurar as lágrimas. Meus olhos já estavam bem
molhados, faltava pouco para começar a escorrer.
Pouco que estava por vir.
O beco, na verdade, não era beco. Tinha saída, onde provavelmente
dava na casa noturna em que Bill estava... e pelo que me lembro, ele
disse que era uma área com várias boates e bares. Isso responderia
porque vários curiosos iam chegando para assistir aquela desgraça.
Está mais para humilhação. Foram chutes, que geraram gritos
horripilantes. Não sabia se eu estava mais desesperado tendo que ver
do que ele levando. Os socos muito – sério, muito MESMO –
fortes, fazendo sua cabeça pender para a direção que o punho de um
dos três mandasse, causando talhos em sua pele, arrancando sangue
com as próprias mãos. Sua boca também estava toda vermelha, cheia
de sangue, talvez até alguns dentes. O casaco dele estava no chão,
sujo, e a camiseta preta não existia mais, toda em retalhos, trapos.
E os desgraçados achavam graça!
Notei que alguém na multidão gritava com o celular, chamando uma
ambulância, ou o que quer que fosse, pedindo ajuda.
Deu para escutar, em alto e bom som, quando quebraram o braço dele.
Eu estava afogado em lágrimas, gritando, xingando-os, quando
implorando para soltá-lo, para pararem.
“Bem mais tarde o homem me soltou e pediu desculpas pela joelhada,
explicando que se eu tivesse continuado e partido para cima deles,
teria levado também.”
Nem agradeci, meus pulsos doíam pelo aperto, eu só queria me
libertar. Ele já não tinha estômago, costelas, pernas, nem braços.
Estava de pé porque aqueles dois canalhas o seguravam – ok, era
melhor do que se estivesse jogado no chão, feito o casaco... –
mesmo assim era chutado, cuspia sangue. Deram um... um soco em sua
testa, deixando um corte enorme bem próximo da sobrancelha. A
impressão era de que o piercing tinha sido arrancado. Gritei pelo
sofrimento dele, de novo.
“Eu não consigo achar as palavras que quero para contar tudo..
mas tudo bem, vou continuar.” Era melhor nem tentar entender a
expressão do rosto de Jake. Uma mistura tão grande de coisas tão
ruins...
No barulho da noite uma sirene tocou e o som de pneus voando no
asfalto chegou até nós.
O
golpe final foi o mais horrível. O pior. Os cinco ficaram com pressa
ao ouvir o carro e um deles se afastou, remexendo em alguma coisa na
penumbra. Voltou com um negócio de metal, não um pé-de-cabra, algo
parecido com isso. Seguido da rápida corrida de passos longos do
desgramado, desceu com toda a força o objeto na cabeça dele,
fazendo-o dar um grito que me persegue até hoje. Depois, uma outra
batida nas costas, fazendo o grito parar. Com o som daquele troço na
cabeça dele, a ideia que dava era de que ela tivesse se partido em
milhões de pedacinhos.
Eu parecia hipnotizado enquanto ia contando, nos maiores detalhes
possíveis. Possíveis no limite em que conseguia transformar em
palavras as imagens da noite – isso se aquilo pode ser chamado
assim.
No descrever da história minha voz não parecia ter emoção
nenhuma, ao contrário de meus olhos.
O
carro da polícia passou por mim bem nesse momento, e os demônios o
soltaram com todo o cuidado (ironicamente, claro) no chão, e
fugiram. Outra sirene entrou em cena e três policiais saíram atrás
dos caras. O homem me soltou e corri até Bill. Não prestei atenção
no sangue que o envolvia da cabeça aos pés. Nos rostos
aterrorizados e assustados da plateia. Nem nas minhas lágrimas, no
aperto que estava em meu coração. A única coisa que saía da minha
boca era uma estranha variação de gritos e gemidos, roucos, cheios
de sofrimento e angústia, em forma de não,
ou Bill. Ignorei o outro policial que veio falar comigo e me ajoelhei
ao lado dele, sentado – não tinha se deixado cair, arranjando
forças sabe-se lá de onde para continuar apoiado no braço, cheio
de cortes, numa poça do próprio sangue, o mesmo que corria nas
minhas veias –, ofegante. Uma imagem que ficaria pintada como um
famoso quadro na parede de minha mente, até nunca mais.
“Bill?” Me mostrando que estava me ouvindo, virou o rosto para o
outro lado, cuspindo um pouco mais de sangue no chão. “Bill!”
“Não ouvi quando a ambulância estacionou, chegou. Só vi que
alguns enfermeiros pediram para eu me afastar e começaram a falar
com ele, a fazer perguntas. Ouvi meu nome em uma das respostas. Uma
maca apareceu ao seu lado e foram fazendo todo o procedimento. Um
deles me manteve afastado até que consegui dar uma escapada.”
Ele chorava, não dando atenção ao consolo de uma enfermeira que
veio descendo da parte de trás da ambulância. Quando fiquei ao lado
dele, a moça perguntou se eu era Tom. Afirmei e Bill pediu para me
ver. Estava com o pescoço imobilizado, portanto tive que me
aproximar mais e me inclinar. Ele estava todo sujo, vermelho. Aqueles
cabelos sempre lindos estavam gosmentos perto da testa, por causa do
sangue. A mulher disse que tinham que levá-lo, e eu poderia ir
junto. Uma lágrima minha caiu no rosto dele, que piscou forte ao
sentir.
“Não se culpe. Não importa o que acontecer, a culpa não foi sua.
Eu te amo, Tom.” Fiquei surpreso em ouvi-lo, a voz limpa como
sempre, apesar das pausas. Respondi que também o amava, passando a
mão em seu rosto.
“Daí fui afastado e arrastado pela mulher até lá dentro. Os
olhos de Bill estavam em mim o tempo todo, dava para sentir, mas
sempre que olhava de volta, ele desviava. Estava envergonhado. E eu
arrasado, me martirizando por tê-lo deixado ir nessa merda. Nunca
fiquei sabendo como ele se meteu no meio daqueles cinco. Ele queria
falar, só que a enfermeira o mandou ficar quieto três vezes. A
última coisa que ele me disse foi 'Tom... me desculpe.'”
Limpei as lágrimas e deixei as mãos no rosto. Jake se acabava em
lágrimas e em fungadas. A manga de seu casaco estava bem melecada.
Começou a ofegar... saiu correndo. Deu para ouvir que ele foi
vomitar no banheiro. E eu que me achava fraco... Se fosse ele naquela
situação, tinha se cagado de medo... Céus.
Injusto. Completamente injusto. A polícia pegou quatro dos cinco.
Eles não disseram o motivo de espancar o meu irmão. Recusei a opção
de ficar frente a frente com eles e soltar todas as acusações e
perguntas. Mandei recado, só. Eles disseram que não eram para
matar. Nunca tinham sido pegos batendo em alguém. Viram o garoto
saindo da boate gay, sozinho e foram atrás. Preconceito é fogo,
hein. Mata.
Acho que se tivessem dado um tiro nele, seria melhor. Ao menos seria
só um tiro, só um furo para sair sangue. Mas não. Os dementes
queriam era humilhar alguém. Fracos. Todo machão é assim... por
mais músculos que tenha, se não consegue colocar outro fracote
para baixo, bate, para se sentir superior. Porra. Fizesse isso com
eles mesmos.
Acabei ficando mais um tempo ali, conversando e consolando Jake.
Coitado. Eu disse que ninguém merecia saber.
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