Wednesday
- September, 11st
O estranho é que
desde aquele dia, eu nunca estive sozinho.
Eu sentia a presença
dele em qualquer canto da casa, em qualquer lugar onde nós já
estivemos juntos. E era algo alegre, diferentemente de mim. Você
lembra muito bem tudo o que eu passei, afinal, passei na sua frente.
Por você também, é
claro, que nunca me deixou sozinho. Mas por ele...
Incrível. Tão
admirável. Admirável como sempre foi, só que agora com um toque de
sobrenatural.
Ou,
quem pode provar, o natural fosse apenas eu, viajando nas minhas
lembranças.
Confuso.
Continuava tudo o que estava antes. Horrorizado, perdido,
atrapalhado, dolorido, e, pior ainda, sem vida. Sério. Estava quase
o que podia se chamar de morto. Quase não comia, médicos não
conseguiam me ajudar... Tá, admito. Eu é que não queria e nem
deixava ser ajudado. Não abri a boca nenhuma vez em nenhum dos
psicólogos que a mãe me levou. Ela já estava melhor, porque se
deixara ajudar, só não tão melhor por causa de mim... Eu deveria
era tê-la tomado como exemplo, mas não pensei nisso nessa época.
Meu dia era praticamente ficar com uma garrafinha d'água na
cabeceira, dando uns goles de vez em quando, deitado, abraçando um
travesseiro que roubara do quarto dele. Foi a única vez eu me atrevi
a entrar lá... não foi assim tão bom. Já entrei com medo, como se
esperasse o quarto todo sujo de sangue, como era minha última
lembrança dele. Saí chorando, da mesma forma que saí da ambulância
naquela maldita noite. Ele não aguentou nem chegar ao hospital.
Sempre fomos teimosos. Ele foi teimoso o suficiente para me convencer
a ir sozinho naquela festa. Só que a teimosia não adiantou na luta
contra a morte. Nada adianta na luta contra essa coisa. Nem a
esperança... no meu caso.
Ou, quem sabe, ela poderia me ajudar... não ter que lembrar de mais
nada seria bom. Desde que as visitas fossem melhores do que as de
antes... como as de Bill, pode exemplo.
Elas me trazem dor, é verdade. Só que com um certo conforto, uma
certa alegria.
E também uma contradição... que eu nunca parei para pensar, e nem
quero. Tenho medo que a verdade acabe com qualquer bela ilusão
minha. Ou que transforme qualquer falsa alegria, em mais tristeza.
Não vale a pena.
Acordar sozinho durante tanto tempo é horrível. Não tinha mais
quem incomodar... Na verdade, quem aguentar, pois era sempre ele quem
acordava antes e vinha me incomodar. O responsável contra o
preguiçoso. Eu não conseguia ver todos os detalhes, como via antes.
Como víamos antes.
Eu sou burro. Ainda espero que você volte mesmo. Ainda espero que
essa realidade fodida seja uma mentira. E que suas aparições sejam
um bom pressentimento. E que a morte seja uma promessa que não
demore a se cumprir. Assim não dá.
Já estive muito pior, é verdade. Tive a mesma vontade de me
esconder de seus olhos, para que não me visse com todo esse
sofrimento na cara, como você fez por causa do sangue. E sempre tive
a impressão de que isso nunca funcionou. Você sempre soube das
minhas dores. Dos meus tormentos. Dos meus piores pesadelos. E sempre
foi o que me salvou de tudo isso... depois de ter me entregue de
presente. Se era real? Não sei. Mesmo que no fundo mais profundo eu
saiba que não.
Só que não gosto de acreditar nisso. Foi bom, então que mal faz
eu sonhar que foi real? Você quem, hein? Não é meu espelho, com
certeza. Mas poderia dizer que sim. Meu gêmeo, oras. Meu irmãozinho
gêmeo... dez minutos mais novo. E uns dez anos mais velho, se for
tratar de sensibilidade.
Ok, talvez isso não seja certo, já que ele era meu irmão, a
pessoa mais próxima de mim... mas que eu o admirava feito a um
ídolo, sim. Ele tinha uma força que eu nunca vira em ninguém. Uma
serenidade... algumas coisas na personalidade dele eu reclamava por
não serem minhas. Mas acho que se fossem, nunca teria feito um uso
tão bom quanto ele fazia. Aquele sorriso bobo, enigmático,
maléfico. O olhar malicioso sempre que inventava de pregar alguma
peça em alguém. Comigo, elas nunca deram certo... Mentira. Eu podia
conhecê-lo bem, e mesmo assim ele – às vezes – conseguia
driblar meu conhecimento... hehe.
Roubou até um beijo meu.
Nunca entendi esse dia direito. Ele chegou falando umas coisas
estranhas... que eu não quis entender. Ficou insistindo para eu
dizer sim, aceitar fazer isso, sendo que eu não sabia ainda o que
era isso. Aquela carinha de desolado, o biquinho e os olhos marejados
de lágrimas de crocodilo, piscantes, me contrariaram! Injusto.
Acabei aceitando, rindo e ganhei um abraço apertado. Ele olhou para
os lados, certificando-se de que não tinha mais ninguém. O olhar se
tornou malicioso, e foi aí que tive ideia do que estava por vir. Viu
Tom, não prestar atenção no começo pode dar em merda! E eu ainda
estava sentado na banqueta, para facilitar a atitude dele.
Passou um braço por meu pescoço e apoiou a outra mão no meu ombro
caindo de boca na minha. Eu estranhei COMPLETAMENTE aquilo. E ele
estava com um semblante tão feliz, quase sorridente, se não
estivesse me beijando. Tentei empurrá-lo para trás e ser delicado
ao mesmo tempo, mas ele grudou ainda mais em mim e começou a botar a
língua no negócio. Droga. Me rendi. Ao meu próprio irmão. Apenas
ia acompanhando os movimentos calmos de Bill com minha língua,
deixando-o fazer o que quisesse na minha boca. O piercing era bom...
Quando me dei por mim já estava com a mão na nuca dele, forçando-o
ainda mais para mim. O beijo era calmo, não era sufocante, então
durou mais que o necessário. Admito, meu irmão beijava bem. Só bem
mais tarde fui parar para pensar que consequências esse negócio
poderia ter me dado... Ao terminar Bill estava todo sorridente,
abobado. Disse um obrigado feliz, com um selinho, e saiu saltitando.
Fiquei no mesmo lugar, sem receber nenhuma explicação, e querendo
por demais entender.
Anos mais tarde, quando estou deprimido, sentado... e me olhando no
espelho. No que dou para ver meus pés se mexerem no tapete e volto
ao espelho, vejo Bill me abraçando os ombros. Fico chocado,
paralisado. Tão real. Então eu me dei conta que sentia. Sim, isso
mesmo, eu conseguia sentir o corpo dele no meu. Não tinha
temperatura, não tinha batimentos, não tinha respiração. E ainda
assim parecia vivo.
Fiquei foi pasmo. Sem querer acreditar. E mesmo assim adorando,
amando poder vê-lo de novo. “Por que você me beijou?” Ao notar
que tinha perguntado mesmo, não apenas pensado, desviei o olhar para
a parede, mexendo em meus dedos.
Queria saber qual o motivo das garotas nunca largarem sua boca. O
olhei alarmado. Ele tinha respondido? Mesmo?! Ou só ouvi a resposta
na minha mente, com aquela linda voz, que há muito não me chegava
aos ouvidos?
Ah, não invente Tomi. Você sempre esteve rodeado delas. Bill
devia estar louco. Ou eu. Sei lá e não importa, mas que eu estava
impressionado com essa coisa aí, estava. E o ótimo, eu estava
tentado a respondê-lo. Estava realmente precisando papear com
alguém. Papear com ele. Quando ele se foi, levou junto meu
melhor amigo, meu maior conhecedor, minha melhor fonte de ideias e
conselhos. Meu porto seguro.
Desculpe. Comentou, como quem ouve meus pensamentos. Mas
não se preocupe, agora eu estou aqui. De novo.
“Para sempre?”
Pelo tempo que for necessário. Olhei novamente para ele, me
enxergando naqueles olhos tão iguais aos meus, contornados pela
costumeira camada preta. Lindos. Ei... e eu gostei de ter feito
aquilo, como você notou.
“Sim. Eu também... foi com amor.”
Exatamente.
Notei que ele se afastou e ficou me olhando, estreitando os olhos
por algumas vezes, me analisando nos mínimos detalhes. Interrompi
esse ato me rendendo a algo que me fazia uma falta tremenda:
abraçá-lo. Joguei meus braços em volta de seus ombros, ficando
surpreso em conseguir tocá-lo, dando uma vida inimaginável àquela
imagem. A tensão em suas costas se dissipou, relaxando e libertando
os braços, envolvendo minha cintura. Parecia que eu nunca tinha
estado em situação melhor.
“Lembra daquele seu pedido?” O vi fazer que sim. “Eu não fui
capaz de cumpri-lo.”
Eu sei. Era uma esperança bem vaga, quando falei aquilo. A mesma
que eu estava sentindo com relação à minha vida. Naquele momento,
eu estava praticamente entregue aos braços da morte.
Fiquei tentado a lhe reconfortar, dizer que não era nada demais,
que isso era pura besteira. Ele fez que não com a cabeça,
reforçando minha ideia de que ele sabia de todos os meus
pensamentos, de que ele poderia estar somente na minha cabeça.
Poderia, mas não estava.
Pelo menos uma coisa não foi tão atingida pela minha... morte
como todo o resto. Hesitou um pouco ao pronunciar a palavra
morte. Fiquei curioso, querendo entender. Continuar o mesmo
teimoso.
Admito que só consegui entender isso no seu total significado, dois
meses depois, quando me dedicava as palavras, em uma folha de papel.
Pena que elas não fluíam com tanta naturalidade ou com tanta beleza
como com ele. Coisa que ele nunca quis me ensinar, da mesma forma que
nunca tentou aprender a tocar uma guitarra. O sentido? Também nunca
vi.
Você é um bobo, Tom. O sorriso que lhe invadiu o rosto
mostrava que acreditava nas próprias palavras. Primeiro, ele me
obriga a tomar um banho. Segundo, fica aparecendo no espelho sempre
que não estou olhando, e fica conversando comigo sobre coisas da
nossa infância, me fazendo ficar completamente constrangido por
estar nu na sua frente. Você tem uma bela bunda, já disse isso?
“Porra, deu né. Você veio aqui para me animar ou para me
incomodar?”
Um não é o mesmo sem o outro. E você está com um aroma bem
melhor agora.
Sua maldita escolha das palavras me deixavam tenso, estranho, por
ser uma das poucas coisas que tinham mudado. Parecíamos que não
tínhamos toda aquela intimidade de antes, mas em compensação, ele
parecia um pouco mais atirado do que era, ao menos comigo.
Mentira. Quando o beijei você estava com uma ideia bem parecida
na cabeça. Suspirei. Me enrolei cuidadosamente na toalha,
parando na frente do espelho e me olhando nele, com as insistências
de Bill com seus se veja logo, você está mais parecido comigo
agora. Indiretamente, se chamou de depressivo. Eu estava magro.
Ainda tinha alguns músculos, mas estavam murchos. Não fazia mais
exercícios, porque não me alimentava direito para ganhar energia
suficiente para gastar. E estava branco. A única luz que eu conhecia
nessa situação era a artificial, no teto de meu quarto. Não que eu
fugisse do sol, só não me dava mas tão bem com ele quanto antes.
Em pleno verão.
As roupas eram sempre as mesmas, escuras, camiseta, boxer e calça.
A barba, Bill também me fizera fazer. Me incomodava bastante e
ignorar estava ficando um pouco complicado. Logo teria que fazê-la
mesmo, Bill só apressou minha vontade.
Não há de quê.
“Ah sim, muito obrigado, irmãozinho.” Murmurei.
Na-na-não! A voz se materializou ao meu lado, dando-me um
belo de um tapa na mão quando ia pegar a mega camiseta (preta) na
cadeira. Para o guarda-roupas.
“Sim senhor.” Fui meio que empurrado pela falta de iniciativa.
Ah é, tinha que pegar uma cueca ali, da mesma forma. Esqueci que
ainda estava de toalhas. Estiquei a mão com uma lentidão quase
exagerada, para o tecido preto. As mãos dele foram mais ágeis e,
segurando na minha, pegaram uma vermelha. Por quê?
Você está precisando. E não discuta. Confirmei. Lancei um
olhar para ele e para a cueca na minhas mãos e para a toalha na
cintura. Me virar? Ergueu a sobrancelha. Esse antigo costume
dele me desarmou completamente. Mas que timidez. Soltei o pano
no chão e me atrapalhei, quase caindo, para passar as pernas pelo
lugar certo. A camiseta amarela.
“E a calça?”
Essa tanto faz. Você pode escolher.
Não sei não, só que eu não me senti muito mais vivo por causa
daquelas cores me cobrindo. Me senti foi estranho, por estar deixando
meu irmão escolher as minhas roupas.
Demorou, Tomi. Mas fiquei feliz em tentar ajudar. Calma, porque
ainda há muito para fazer...
Acordei, revendo a imagem do pedaço medonho de metal
acertando em cheio a cabeça de Bill. Eu ofegava, notando que meu
rosto estava molhado, que minha boca tremia e minha respiração
estava mais entrecortada que o normal, os batimentos acelerados.
Mais uma vez, a mesma história. Já estava mais do que farto dessa
merda dessa mesma cena. Percebi que não tinha gritado... o que já
era um certo avanço. Me entreguei ao choro, deixando-o o mais
silencioso possível, mas sem conter o número de lágrimas. O quarto
estava escuro, fazendo a silhueta de meu irmão reluzir, me mostrando
que ele estava presente. Droga.
Não sei se é pior ver ou sentir. Ele comentou, me
assustando ainda mais. Sua expressão demonstrava uma enorme
compaixão, o olhar sem foco, perdido no escuro, com os lábios bem
fechados, quase formando um biquinho.
“Eu me faço a mesma pergunta. E, geralmente chego em uma
conclusão não tão concreta. Ver, com toda a certeza.” Me
contradisse, por não encontrar as palavras corretas, ainda muito
fora do meu estado normal.
É traumatizante da mesma forma. Terminou, levantando os
olhos para mim.
Foi então que me dei conta. Me dei conta que deveria ser, no final
de tudo, mil vezes pior para ele. Além de sentir, ficar vendo minhas
memórias, revivendo tudo.
Não me lembro de tudo, mas seus sonhos me mostram o quão
horrível foi. Você achou mesmo a palavra certa, foi
humilhante. Fungou. Abri os braços, me recusando a ir até ele e
abraçá-lo. Ele entendeu, se jogando em mim, me fazendo cair nos
travesseiros, não acertando a cabeceira por muito pouco. Engraçado.
Eu podia senti-lo, mas minhas lágrimas não molhavam seu cabelo.
Que coisa. Eu deveria era agradecer por tê-lo do meu lado, não
ficar questionando milhares de coisas. Pena que isso seja natural,
não dê para fugir. Da minha fome de saber.
Só sei que ele sempre me apareceu nos momentos mais difíceis da
minha depressão, e sempre foi para me ajudar... Sempre foi minha
salvação.
A verdade, novamente, nunca consegui descobrir. E tenho certeza de
que não quero.
Nem depois de morto, ele cansa de me dar apoio.
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