sábado

Quinto


Thursday - September, 12nd

  Mesmo assim, nós sabemos que é completamente difícil. Sabemos que é fácil fingir.
  Eu nunca te contei, mas sempre soube de tudo o que você sofreu. De tudo o que eu sofri.
  E, mesmo estando no mesmo sofrimento, no mesmo barco.. ainda sorríamos um para o outro. Um sorriso falso, que não dizia absolutamente nada.
  Aquela merda ainda me atormenta. Ainda me trás todas as dores. Ainda não parou, nem vai parar.
  Acreditar em mim vai ser difícil, eu sei. Porém, nunca fui tão bom ator quanto ele.
  Eu te disse mais de uma vez... quando eu crescer, quero ser como ele.
  Ele quem?

  Estranho.
  Da mesma forma que nós conseguimos nos enganar, repetir uma mentira tantas vezes que ela passa a se tornar verdade. Uma meia verdade. Nós quase acreditamos nela, pois no fundo sabemos que não é bem assim. E, quando queremos desmentir, cortar qualquer omissão da história, nos calamos. É difícil se soltar de algo que deu tão certo. Tão certo que chega a contagiar os outros.
  No final de tudo, damo-nos conta de que nada é realmente fácil, que o que se parece com isso tem apenas um nível mais baixo de dificuldade. Se fosse fácil, não seria feito por nós. Se fosse fácil viver, não estaríamos como estamos hoje.
  Eu não estaria como estou hoje. Não estaria passando por essa fase, tendo que aguentar sozinho tudo isso, já que o mundo inventou de me tirar a melhor das companhias. Eu posso não ter me dado conta disso quando ele estava ao meu lado, mas no fundo, meu coração sabia.
  Não dá nem para tentar descrever como está sendo essa coisa dessa vida. Se é que posso me atrever a chamar o que tenho passado de vida.
  Minha vida se foi junto da dele. Há cinco meses. Sete. Sei lá.
  E, sem minha vida, o que é possível fazer? Se viver não dá, qualquer um acaba fingindo, sem se importar com as consequências. Ninguém sabe se o que vai vir depois será bom ou ruim, muito menos eu.
  E acho que prefiro nem ficar sabendo.
  É menos difícil assim, deixar o futuro no futuro, com o que quer que esteja esperando por mim, e me trancar aqui, no presente.
  Como se adiantasse alguma coisa pensar dessa forma.


     Já não suporto mais repetir para mim mesmo que simplesmente não sei mais o que fazer. E não tenho quem me ajude agora, a fazer outra coisa senão ficar com a mesma ideia repetindo na cabeça, que não resolveria realmente tudo, mas daria fim em qualquer um dos meus problemas.

     E antes de qualquer que fosse minha escolha, tinha que dar alguma atenção para minha mãe. Fazia alguns dias que ela vinha tentando, ou pensando em tentar conversar comigo, querendo entender o que eu vinha fazendo, qual o motivo dessas coisas. Ela parecia notar que eu andava mais feliz nesses últimos dias, e dava para perceber que ela também estava mais alegre. Tão relativo. Suspirei. Bill que era bom em ser ator, eu não. Não parecia nem amador ao lado dele. Sempre tão discreto e ao mesmo tempo tão extravagante. Tão inesperado, aos olhos dos outros. Tão... indescritível aos meus olhos e aos de seus amigos. Ele era simplesmente... ele. Meu irmão gêmeo.

     Talvez, quando eu o tinha ao meu lado, não o enxergava com os mesmos olhos de hoje.

     Talvez, com toda a certeza.


     Abri a porta da geladeira, vendo o que iria acalmar meu estômago no momento. Não estava com tanta fome e nem conseguiria comer muita coisa, já que há alguns meses tinha perdido o costume de me alimentar direito. E os horários que a mãe insistia antigamente, também não mais existiam. Mas que porra. Como uma coisa desencadeia uma mudança tão grande assim. Parece que tudo simplesmente não se torna igual ao que era antes. Parece que o antes não existiu, que é só invenção da nossa fraca memória. E eu também não lembrava que gostava de qualquer que fosse o iogurte antes disso, só que agora foi o que meus olhos encontraram e o que me pareceu certo para comer. Estranho.

     Tinha acabado de me sentar no sofá da sala, colocando a primeira colher de iogurte na boca quando um movimento em alguma parte da casa me chamou a atenção. Deveria ser a mãe. E acho que ela tentaria a conversa de novo. E acho que eu estou novamente tentado a fugir disso.

     Pensando melhor, é mais simples encarar. Não deve doer tanto.

     “Tom?” Não respondi, dando outra colherada no apetitoso negócio rosinha, cremoso, dentro do pote. “Filho, está aí?”

     “Uhun.”

     “Ah, oi.” Ela veio por trás de mim, dando a volta no sofá e sentado-se ao meu lado. “Tudo bem querido?” Me olhava com grande curiosidade, como pude perceber pelo canto do olho.

     Dei de ombros, com mais uma colherada. Hm, seria quase a última.

     Ela fez que sim com a cabeça, vendo que eu não estava para falar, e com certeza sabia que eu só me concentrava no pote que estava na minha mão para escapar dela.

     “Você deu uma melhorada, assim, do nada...” Soltou as palavras ao vento, vendo se assim eu a responderia direito. Ok, a isca era boa. Boa para soltar mais uma mentirinha no ar.

     “Sim.”

     “Um dia trancado no quarto, o outro já comendo alguma coisa mais, indo rever os amigos... até o ex namorado do Bill...”

     “Sim...” Dessa vez ela não me ignorou, esperando o que viria depois. “Já estava na hora de retornar um pouco a minha antiga vida. Rever os amigos...” A frase se perdeu quando notei que tinha acabado com o conteúdo do potinho. Como se isso fosse algo realmente muito importante.

     “Hmmm... é bom saber que eu não te perdi.” Ainda. Colocou a mão na minha perna, me olhando ternamente, fazendo carinho. Retribui o olhar, com um falso sorriso. Ela me abraçou. Não foi um abraço bom. Nele estavam todos os sentimentos, todas as lágrimas e tudo o mais que eu iria deixar para trás. Logo agora que uma pseudo-felicidade tinha se instalado em mim. “Eu vejo como está difícil, Tom. E você não sabe o tamanho da minha alegria em ver você assim.”

     Começaram a cair as lágrimas, molhando minha camiseta. “Sim, mãe.” Me forcei a retribuir o abraço, mesmo me sentindo bem indiferente perante as palavras dela. Ela não sabia da verdade.

     E a minha maior verdade, mal eu sei qual é. Apenas sei que sou um grande mentiroso.


     Consegui, depois de mais algumas outras palavras, escapar dela. Sei lá, com minha ideia na mente, não ajudava em nada esses acessos da mãe. E, como sempre, eu estava sendo egoísta demais. Fazia alguns dias que eu não ia no cemitério, e isso ficaria para amanhã. Estava ameaçando chover, o que só me deixava ainda com mais preguiça de me levantar da cama. E eu nem sabia que horas eram.

     Não faz nenhuma diferença, na verdade. Se ela existir, porque na minha situação mesmo... já não sei nem mais se isso que eu estou passando pode ser chamado de vida, porque me confundo com as mentiras que invento. Foda-se que seja errado, eu não estaria aqui hoje se não mentisse para mim mesmo por tanto tempo.

     Essas visitas... doeram mais do que as alegrias que vieram. A recompensa não foi grande. Só que foram coisas necessárias, não daria para mudar de página sem ir encontrar meus melhores amigos, de antigamente, mais uma vez. Sem explicar o que tinha acontecido com Bill. Era justo eles saberem o que o amigo tinha passado. Mesmo que o que eu vá fazer não seja justo com ninguém, talvez nem comigo mesmo.

     E Jake. Ele era outra pessoa que merecia ficar sabendo. Foram as duas únicas vezes que eu contei a história toda... já estou mentindo de novo, contei uma vez também para a polícia, mas foi diferente. Não foi detalhado. Eu não conseguia me lembrar de tudo, fora tão recente. E a mãe... bom, ela sabe da versão resumida, e isso já é mais que o suficiente. Uma pessoa sendo perseguida pelas cenas da morte de alguém mais do que amado já basta no mundo. Não preciso traumatizar outra da forma que eu fui traumatizado, mesmo que seria diferente.


     Os outros me viram tão feliz nessa semana. Tão falsamente feliz. O esforço foi tão grande para sorrir, para rir, para sair do lugar e do momento depressivo que eu estou vivendo, que em certa parte fez efeito, e em alguns momento foi natural. Ou quase. Foi bom para, por um lado. Por outro, nem tanto. Nunca fingi muito bem. E Bill nunca tentou me ensinar como era... saía tão naturalmente com ele. Por mais que doesse por dentro, ele conseguia rir com tanta naturalidade que enganava qualquer um. Os olhos não sorriam, mas mesmo assim funcionava. Eu também nunca fui atrás para aprender.

     Bom, se ele conseguia então eu também poderia... não custou tentar. Foi uma boa fonte de inspiração.


     Inspiração. A palavra acendeu uma luz na minha mente... uma coisa que Bill gostaria muito de me ver e ouvir fazendo. Faltava apenas a voz para acompanhar, porém... Fui atrás da guitarra. Séculos que não a pegava nas mãos. Devia estar numa desafinação só.

     Resolvi trancar a porta, para não correr o risco de ser pego nesse antigo amor, e ter que passar mais tempo fingindo do que tocando. Estava no fundo do armário, e como adivinhei, desafinada. Faltava o amplificador, senão não teria como afiná-la. E isso me daria um trabalho de horas a fio, não me lembrava mais tão bem assim dos sons certos de ouvido. Tudo bem, isso ao menos me daria um motivo para sorrir um pouco, com todas as boas lembranças que viriam.

     Essa era uma terapia a qual devia ter me rendido há muito tempo. Meus dedos estavam quase coçando para tocar novamente nas cordas metálicas, para tirar o tão magnífico som, para me render aos poderes da música.

     Quem sabe essa não poderia me mostrar um outro caminho para a salvação? Mesmo que eu não vá mudar de ideia, conhecer não me fará mal.

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