sexta-feira

Sexto


Friday - September, 13rd

  Você lembra, com a maior das certezas, do começo de todas as mudanças.
  Dos cabelos loiros escuros para o preto, com um comprimento maior. Preto também em torno dos olhos, dando um ar afeminado aos traços delicados do rosto. Os piercings. As tatuagens.
  Em como, em tão pouco tempo, uma personalidade tão incrível veio à tona. Claro, como sempre, cheio de intrigas, sendo que nenhuma delas o atingia, como eu sempre fui meio preocupado.
  Um exemplo tão magnífico e diferente que as pessoas não sabiam entender, não aceitavam, só pelo fato de ser melhor que o delas. Melhor que o meu.
  Para sempre.

  Diferente.
  Completamente diferente do que alguma vez na vida já fui e já pude ser. Se antes eu me considerava um morto à espera da morte, agora eu me sentia como um morto vivo. Às vezes a vida vinha a mim com toda a força, levada por um falso fingimento. Em outras eu me rendia à tristeza novamente, como nos primeiros meses. Os intervalos eram curtos, mas mesmo assim me deixavam acabado.
  Não sei ao certo o que me parecia estar vivendo essa situação, entretanto, praticamente nada havia melhorado desde que Bill fora espancado.
  Eu estava mais para um zumbi. To tipo que morreu e saiu andando do túmulo seis meses depois. Mesmo sem nunca ter entrado nele.
  Uma coisa Simone sempre falava, tanto que depois de um tempo perdeu o ar de conselho maternal que deveria ter. Eu podia estar me sentindo um zumbi, porém ainda estava vivo. Não tinha que me comportar como meu irmão, que não tinha mais a chance que eu estava tendo.
  Que chance? Alguém sabe me dizer?
  Viver sem ele é uma chance? Ou apenas viver? E qual a graça dessa merda?
  Por isso eu parecia um morto vivendo. Não fazia nada que um eu, Tom, vivo faria.
  E ainda assim continuava diferente. De um jeito tão mórbido de se pensar, mas diferente.
  E também cansado. Cansado de ser o que estava sendo, e ainda pior por não ter vontade de mudar.
  Não consigo avaliar o que é pior. Se é logo depois do acontecimento mais horrível que sua vida poderia receber, ou se aos poucos, conforme os meses vão passando e aquela coisa vai se enterrando no passado, junto de seu irmão.
  Querendo ou não, ainda há uma diferença aí.


     Sexta-feira. Dia de ir visitar meu irmão no cemitério. De contar mais alguns sofrimentos para ele. Ou de apenas relembrar algumas outras coisas boas. Uma coisa boa que hoje, particularmente, me surgiu na memória. E o dia era exatamente perfeito.

     Saí pela porta de trás, não querendo correr o risco de ter que dar bom dia para minha mãe. Já estava se tornando doloroso, mesmo sem ela saber qual fim eu tinha escolhido. Depois de cruzar algumas esquinas e saber que já estava longe o suficiente para que ela não viesse correndo atrás de mim, pensei um pouco sobre qual caminho seria melhor para chegar até meu irmão. Bom, de qualquer um que eu optasse, não me seria mais agradável do que os outros, então a escolha foi sendo aleatória, de acordo com meus pés.

     Devo ter demorado mais do que o comum, porque o nublado completo que estava o céu já se encontrava mais claro, com alguns raios de sol clareando as calçadas por onde ia passando. As árvores estavam paradas, não havia uma brisa sequer para me trazer novos ares. Cruzei o portão de ferro e fui traçando a costumeira trilha por entre os túmulos, até estar na frente do que eu desejava.

     Ali o vento já era presente, criando correntes entre os muros que limitavam o mar de lápides que é o cemitério onde... eu sei o que. Só não gosto de pensar. Olhei para a pedra lisa, que me trazia uma tranquilidade muito parecida com a que ele transmitia quando a situação parecia mais que desesperadora para mim. O conforto daquele abraço envolvendo meu pescoço, das palavras que ele dizia. Uma voz que eu nunca mais teria a chance de ouvir.

     Talvez, não é mesmo?

     Olhei em volta, a procura dele. Mas não o achei, então me contentei em poder apenas ouvi-lo. Já era mais do que bom. Eu deveria me assustar com isso, mas é algo tão reconfortante quanto as memórias. E uma hoje, em especial, estava me inticando. Uma que desencadeou tantas mudanças, que nunca foi esquecida por nenhum de nós dois. Ainda que Bill não gostasse muito de se lembrar dela, muitas vezes ela vinha à tona.

     Afinal, é justamente nela que se encontra o começo de uma nova fase... bem no começo da adolescência.


     O convite veio por um amigo da escola. Era uma festa de Halloween. A data estava próxima, e Bill estava visivelmente animado para ir. Não sei porquê, mas ele estava. Eu não queria ir, só que a mãe só o deixou ir se eu fosse, então acabei tendo que ir. Me recusei de todos os modos a me fantasiar. Pelo amor de Deus, sempre achei essas coisas tão completamente idiotas. No final de contas, todo mundo sabe quem é todo mundo... Ok, admito, esse não é meu tipo preferido de diversão.

     Bill ficou uns três dias planejando e arrumando com Simone a roupa dele. Não estava sendo difícil adivinhar qual seria seu personagem escolhido: vampiro. E pior, combinava com ele, muito mais do que qualquer um imaginaria. O cabelo já era pintado de preto fazia algum tempo... o que só o fazia parecer ainda mais branco. Isso ainda que a mãe inventou de colocar um pouco mais de base e branquear ainda mais a pele dele. Depois, veio a maquiagem. Uma coisa que ele nunca mais largaria, pelo resto da vida. A camiseta preta recebeu uns rasgos, para dar ideia de não sei o quê. O cabelo, com a ajuda do laquê, ficou espetado. Isso que ainda era curto, com uma franja para a frente. E claro, para completar, a capa preta com alguns rasgos, umas manchas em vermelho e a gola alta.

     Dentadura ele não quis usar, porque eu achei graça quando ele colocou aquele negócio na boca. Contentou-se com uma gotinha de sangue escorrendo dos lábios, mais avermelhados pelo batom.


     Ele estava tão feliz para ir na festa. E eu fui com uma roupa normal, fazendo-o querer me abominar por isso. Cheguei lá, sentei, e ali fiquei, até ele querer ir embora. Deu para ver que ele se divertiu, enquanto eu esperava o tempo passar com os olhos no relógio, observando a decoração do lugar.

     Hoje eu penso diferente do que naquele dia da festa. Ainda mais que hoje parece um dia bem perfeito para me lembrar disso. “É Bill. Sabe, hoje é sexta-feira treze. Não é a data da festa, mas mesmo assim, as semelhanças das superstições me fizeram recordar daquela festa.” Fiquei esperando uma resposta, como um besta. Eu sabia que ela não viria, e mesmo assim eu gostava de imaginar. “Talvez, se eu tivesse ido de fantasma, só para não te contrariar – o que, digamos, seria impossível – faria mais jus ao que o futuro me reservava.”

     Levantei os olhos, procurando um horizonte que terminava no muro, pequeno pela grande distância, como se eu procurasse meus pensamentos naquela noite. “Como se eu fizesse alguma ideia de que isso um dia iria me acontecer.”

     Limpei uma lágrima.

     “Quem iria adivinhar que um dia eu iria perder justo aquilo que eu não podia perder de maneira nenhuma? Quem?”


     Lembrei que tinha uma das luvas sem dedos, de couro, que ele tanto gostava, guardadas em meu quarto. Uma das coisas que mais me faziam lembrar dele.

     “Sabe, espero que não se importe de eu ter pego algumas coisas de você. Não sei qual o motivo de eu nunca ter te contado. Acho que era porque ainda tinha medo de que você viesse brigando, porque eu havia mexido nas suas coisas. Se fosse nos esmaltes e nas maquiagens então, era melhor sair correndo...” Soltei um risinho sem graça. Como ele era ciumento com essas coisas... os cintos também. “Ou então aqueles seus anéis, que você tanto gostava de enfeitar os dedos. Faz anos que eu peguei um seu, que você sempre reclamou ter perdido. É, eu também o perdi, e só por agora o reencontrei. Essas coisas me trazem tantas lembranças de você que você nem deve imaginar.”

     Minha mente estava na caixinha, dentro do armário. Toda preta, com um BK. no cantinho, em alto relevo. Estava cheia de fotos. Algumas que ele tinha colado, em volta, de nós dois. “Você lembra de quando me deu essa caixa, Bill? Foi num aniversário... tinha uma camiseta, uma avacalhação... era a minha cara, só que o tamanho era mínimo, como se fosse para você. Sempre sacana, não é?”

     Hoje a camiseta já deveria estar vestindo outra pessoa, ou qualquer outro futuro que tenham encontrado para ela. E, na caixinha, ficava a luva e o anel. Junto de uma paleta de sombras, já um pouco usada (se tratando do preto), um vidro de esmalte da mesma cor, um álbum de fotos com nossos momentos mais relembráveis. Embaixo de tudo, uma coisa que a mãe retirara do baú, guardado há anos, desde que começamos a nos vestir diferente. Uma camiseta com Bill na frente.

     Coisas que eu tinha furtado do seu quarto, como se ainda fosse levar uma bronca por isso.

     Sorri. Gêmeos idênticos dá nisso. Depois que eu montei essa caixinha de memórias, nunca mais tive coragem de abri-la. Sempre termino em lágrimas só com as memórias, imagina se for com os itens então.


     Sexta-feira treze. Uma data de superstições, amaldiçoada. Zumbis, bruxas, demônios... e gatos pretos. “Lembra Bill? Quando ganhamos Kasimir?” Ele era uma bolinha preta cheia de pelos. Tão fofo. “O nome, como sempre, tinha que ser você a escolher. Não sei daonde veio essa tradição, só sei que há tempos você gostava de segui-la. Por que será?”

     Céus. Essa era uma época que fazia realmente muito tempo que eu não parava para lembrar. Não tínhamos nem dez anos quando Kasimir entrou na nossa vida. Foi tão feliz. Mesmo que algumas vezes Simone o olhasse com maus olhos, porque ela tinha um certo lado que acreditava nas histórias. Se fosse numa data como hoje mesmo... ai do gato se ela o visse.

     “Sabe, nunca perguntei para ela porque, às vezes, ela te olhava atravessado quando estava com o bichinho no colo... você mostrava a língua e olhava para o outro lado. Com certeza se lembra disso. Devia ser por esse lado dela.” Fiquei esperando uma resposta, que obviamente não veio. “Boba. Kasimir era um gato tão legal. Era bom ter uma companhia, mais uma, quando você quer ficar sozinho, sem fazer nada, só pensando na vida. Junto com você, então.”

     Uma cena bem comum daqueles dias me retornou da memória... A mãe vivia brigando com ele, mesmo tendo nos dado o bichano de presente só porque Bill disse que gostava de gatos pretos. Se ela o ouvia afiando as unhas no seu sofá, deixando-o todo arranhado e desfiado, era de se sair de perto. E parecia que Kasi fazia de propósito, só para confrontá-la.

     “Ele sempre vinha pedir carinho... roçar na nossa perna, subir no colo. Como você.” Dei um sorrisinho de lado. O gato sempre ia atrás dele, não de mim. Só vinha para mim quando não o encontrava. Diabo. (O Bill, não o gato.) “E quando ele se foi... até a mãe admitiu que ele iria fazer falta. Você ficou triste por uma semana, quase. Foi bem doloroso, é verdade... a casa parecia bem mais triste sem Kasi.”


     “Da mesma forma que está muito mais triste agora, sem você.”

     Foi um dos poucos momentos em que... esse meu irmão moreno ficou realmente triste, mesmo que a separação dos nossos pais também tenham causado mudanças. Nós nos confortávamos, confiando que se estivéssemos juntos, poderíamos superar. Ninguém esperava que esse juntos, não fosse para sempre.

     “Será que você também se sente sozinho, Bill? Sozinho como eu sei que estou? In Die Nacht.

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