Prologue – Eu
não aguento mais.
Sunday - September,
8th
Talvez, em alguma
noite, eu me conforme com isso.
Estava lá, eu,
acordado de novo no meio da madrugada, véspera de Natal, com
lágrimas nos olhos.
Era impossível não
chorar. Impossível não me lamentar, não me sentir culpado. É
praticamente inconsolável.
Sempre começava com
cenas felizes, agradáveis... cheias de amor, carinho, alegria...
sempre bom. E então, a história se repetia.
A única coisa que
eu conseguia pedir, era praquilo parar.
Horrível.
É só isso que consigo
lembrar.
O sonho já me
perseguia há quase sete meses, desde que aquilo
acontecera.
Não
vejo sombra de dúvida, foi a pior coisa que podia me acontecer. Até
a minha morte doeria menos. Mas não, ela queria me ver sofrer.
Gostava disso. Quase todas as noites eu sentia aquela mão gélida e
esquelética sobre meu peito, desejando que meu coração parasse,
que eu me entregasse a ela. Podia ouvir sua voz baixa, sussurrando
tudo o que eu queria ouvir, me prometendo um lugar com paz, com
felicidade. A felicidade que ela me tirara, me dando em troca dor e
tristeza.
Sim,
desde aquele dia era isso tudo o que eu sentia. A alegria parecia ter
medo de mim.
As
coisas que me atingiam, pareciam querer me mostrar tudo o que ele
sentira naquele momento.
Todas
as dores. Os toques, nada ficava de fora. Os gritos por socorro. A
mente tendo que assimilar muita coisa ao mesmo tempo, e o chamado por
meu nome. Nessas horas eu sempre acordava gritando o nome dele.
A
mãe vinha toda noite em que isso acontecia, me dava um abraço,
limpava minhas lágrimas, dizendo palavras reconfortantes, e sem
quase nunca repetir. Quando eu dizia que queria um abraço dele,
ela me pedia para ficar quieto, ser forte, e que logo ia passar,
shhhh...
Por
incrível que pareça, eu acreditava nela. Ou me enganava, dizendo
que estava acreditando, quando na verdade sabia, com a maior das
certezas, que aquelas palavras de nada importavam.
Nada,
realmente NADA importava, se toda vez que eu olhasse para a porta do
quarto na frente da minha, e ela estivesse fechada. Ele não estava
aqui.
Então.
Há
uma semana foi nosso aniversário. E não foi algo bom, como antes
era.
Não
teve sorrisos, não teve família, e eu não quis presentes ou
presenças. Parecia que todas essas coisas me remetiam a lembranças
com ele. Lembranças que nunca eram o suficiente. Saí de casa, fui
dar uma volta. Meu objetivo, no momento, era descobrir alguma coisa,
algum lugar, alguma memória, em que ele não estivesse presente e
não fizesse falta.
“Meu
filho, você tem certeza?” Minha mãe interveio, querendo ajudar.
Toda e qualquer ajuda que ela tivesse para me oferecer, eu aceitava
com todo o amor que podia retribuir. Fazia isso com todo mundo.
Chega
a ser divertido. Ou engraçado, não importa. Eu não queria rir, de
qualquer maneira. Todas as pessoas sempre são prestativas quando
veem algum ente querido, ou só conhecido, sofrendo. Sempre estão
dispostas a ajudar. Mesmo que, no fundo de sua mente, se lembrem de
quando estavam na mesma situação que eu (apenas maneira de dizer, é
impossível comparar), e que naquele momento, a única coisa que
queriam, era sofrer em paz. Ninguém para atazanar, incomodar, encher
de perguntas. Claro que sabem que isso não é agradável para quem
está na pior. Então por que motivos o fazem? Ah, sim. A curiosidade
fala mais alto.
Pronto.
Já tinha escapado da minha ideia para a tarde. Já tinha me lembrado
de como éramos curiosos, como era incrível, poder saber das coisas.
É,
deve ser isso. Essa fome de saber. Eu sempre me perguntei por que
nunca cansamos de aprender? Não estou falando de estudar, já que
nesse sentido nós somos obrigados, o que se torna chato. E mesmo
assim sempre queremos aprender mais, saber mais... e quanto mais
soubermos, queremos saber ainda mais. Complicado. Um ciclo vicioso.
Por
exemplo. Já quis saber uma vez como eu podia amar tanto meu irmão.
Já quis saber como seria se não fossemos gêmeos. Não que nos
separaríamos agora, mas se não tivéssemos nascidos juntos.
Imaginei que seria muito ruim, não ter o apoio que ele me dava. E,
inexoravelmente, só para contradizer o que quer que fosse, foi essa
merda que aconteceu.
Inexorável.
Que não cede nem a rogos nem a lágrimas; que não tem piedade.
Cruel, implacável, insensível. A que não se pode escapar. Acho
que essa palavra é a que melhor descreve minha vida, desde aquela
coisa daquele maldito dia.
Tudo
bem. Eu sou otimista, mas peguei dele o costume da realidade. Eu
deveria ter deixado faz tempo o passado para trás, como muitos me
dizem para fazer.
“Não
se preocupe, querido, já passou. Daqui para frente tudo deve
melhorar.”
Humpf.
A vontade que tenho é de mandar todo mundo tomar conta do próprio
nariz. Porra. A vida é minha, dá licença? O sofrimento é meu,
ninguém consegue entender.
Que
egocentrismo! Me vi sorrindo. Que idiota...
Não
sei ao certo, mas sinto que estou repetindo histórias, pensamentos,
imagens. Deve ser mais ou menos isso mesmo, minha vida não teve
alteração nesses sete meses. Sete meses mais do que depressivos. Os
primeiros mesmo, ninguém conseguiu me animar. Me sentia como uma
criança que tinha perdido o urso de pelúcia mais amado, mais lindo,
mais fofo. Daqueles que, além de dormir abraçado, a gente passa o
dia carregando pelo braço, ao melhor estilo Calvin & Haroldo. Só
que, no meu terrível caso, o Haroldo tinha vida mesmo.
Só
tinha. Não tem mais.
Parece
tão simples falar. Mas é tão detestável viver.
Parei,
sentando num banco, dando uma fungada. A brisa estava gelada,
anunciando que o inverno estava para chegar. As árvores já quase
não tinham mais folhas, e o chão não estava mais laranja e
vermelho por causa das mesmas. Me peguei rindo, lembrando de guerras
de bolas de neve, de roupas extremamente gordas e quentinhas, que
davam muito mais vontade de abraçar. Dos anjinhos de neve,
abençoando nosso Natal... de um de nós caindo, sendo derrubado, e
fofamente aplacado no tombo. Daí lá ia o outro e se jogava
em cima.
Tantas
risadas... tão bom! Estava me abraçando quando me dei por mim. Uma
semana, já. Acho que estava na hora de lhe fazer outra visita.
Nessas
visitas, eu nunca chorava. Podia ficar a tarde toda contando coisas,
sentado no túmulo ao lado, observando sempre aquelas datas... a do
nascimento, com a estrelinha ao lado, dia primeiro de setembro de mil
novecentos e oitenta e nove. E a de morte, dia vinte e um de março
de... deste ano. Eu arranquei os números. Não suportava olhar para
eles. A mãe perguntou, quando veio ver, e eu disse apenas que era
melhor assim. Ela sempre se lembraria, quando quisesse era só mandar
fazer outro. Se ainda não tinha feito, é porque respeita minha
decisão.
Eu
sou egoísta. De todas as vezes em que ela me abraçou, me dando o
melhor dos consolos possíveis, eu só pensava no meu sofrimento. Ela
sempre se mostrou tão forte, nunca fraquejando ao meu lado. Só que
eu já a tinha escutado chorar.
E
isso vai me fazer chorar também, então, melhor parar.
A
pressa sempre me consumia quando era para ir ao cemitério. Um lugar
que ele sempre tivera medo, e do qual hoje não poderia fugir. Arg.
Cheguei lá, pensando em dar um beijo na bochecha, seu cumprimento
preferido, que eu nunca estranhei ou repudiei. Só ele fazia isso
comigo, e eu raras vezes fizera com ele. Me pergunto se ele estava
sentindo falta. Sentindo toda a falta que eu sentia. Que eu sinto.
Poder abraçá-lo, passar o dedo por aquele sinalzinho lindo no
rosto, ver aquele sorriso abobadamente feliz... Suspirei. Por que
tudo tinha que ser só na minha cabeça agora? Ok. Abraçar uma
lápide não teria sentido.
Coisa
de louco. Ainda não tá na hora de relembrar as minhas loucuras por
esses tempos.
Bem
como coisa de gêmeos, que veem tudo por mais de um ângulo, pensei:
o que outra pessoa diria se me visse e ouvisse desabafando com um...
morto? Tanto faz.
Ah.
Meu lindo irmão. Passei os dedos na pequena foto emoldurada...
imaginando estar tocando o rosto. Aquele rosto lindo.
Hoje
penso que não dei tanto valor a ele quanto devia ter dado. Ou que
não demonstrei tudo o que poderia ter demonstrado. Se eu pudesse
voltar no tempo... famosa essa frase, hein. Pena que fica sempre no
se, no pretérito imperfeito. Nem adianta. Não dá para fazer nada.
“Você
não vai voltar, não importa o que eu pense, deseje ou faça. Levei
tanto tempo para entender e aceitar isso. E mesmo assim, continuo não
acreditando. Sempre choro, lembrando de nós...” Eu estava
sussurrando, desfolhando um gravetinho que tinha achado no chão. “Eu
nunca contei realmente o que aconteceu naquela noite, para ninguém.
Nem a mãe, nem nossos amigos... Nem para Jake.
“Não
sei se era isso que você queria, mas sei que vou contar. Amanhã,
provavelmente. Espero ter forças para conseguir detalhar a cena. Foi
a pior coisa da minha vida. Da sua... não gosto nem de pensar. E,
você sabe. Estou morrendo de saudades.”
Ficar
ali não estava ajudando, então já era hora de ir embora. Ali, onde
todos os meus pensamentos e emoções se tornavam palavras e
escorregavam pela minha voz baixa, onde eu conseguia me acalmar...
Uma voz que você sempre gostou de ouvir, não é mesmo. Nunca me
orgulhei muito dela, mesmo tendo que usá-la, sempre. Falávamos
demais, e nem sempre nos escutávamos... e olha que meu maior
passatempo dependia sempre mais de meu ouvido.
Sua
voz que sempre me encantou, garoto. Vou continuar amando-a, sonhando
poder ouvi-la mais uma vez.
Da
mesma forma que ainda te amo e vou te amar, Bill.
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