domingo

Capítulo 3

     Tom tentava fazer com que o cheiro do fumo saísse milagrosamente de seu corpo enquanto subia os degraus para o quinto andar. Ele tinha acabado de fumar três cigarros sucessivamente, abaixado atrás da máquina de lavar. Alguma coisa naquela instituição o fazia ansiar pelo seu maior vício.

     Naquele dia ele lavava o chão. Um processo lento e cuidadoso, o qual ele estava levando mais tempo que o necessário para cumprir porque ele não estava com humor para fazer alguma coisa fora isso. As máquinas de lavar eram pesadas e difíceis de locomover, depois de deslocá-las algumas vezes na semana, Tom tinha conseguido alguns músculos definidos nos braços.

     Ele tinha passado toda a noite anterior com Brigitte. Ficaram ocupados a noite inteira, mais fervorosamente que o normal. Tom não sabia explicar como tinha ficado na dela, mas ele não tinha do que reclamar. Nesta manhã, ele quase não conseguia sair da cama, ela estava totalmente abraçada a ele, expirando hálito quente em seu pescoço. Ele sentia-se revigorado, confortável e confuso ao mesmo tempo. A cada pequena oportunidade ele retirava-se até a lavanderia para dar uma fumada.

     Tom estava inquieto, ele queria alguma coisa e sabia que ele não encontraria nada legal naquela merda de instituição.

     Retornou para onde tinha saído mais cedo e viu que Bill estava sentado perto de uma das máquinas.

     “Hey,” Tom disse receoso, franzindo a testa. Da última vez que tinha falado com Bill, este tinha sido extremamente agressivo. Agora ele parecia animado, simpático.

     “Oi, Tom,” Bill disse sorrindo. “Eu sabia que você voltaria, por isso sentei aqui tempo suficiente. Boas tragadas?”

     Tom olhou carrancudo para Bill, abanando as roupas e o cabelo novamente. “Dá pra sentir o cheiro tanto assim?”

     “É, dá sim.” Bill deu de ombros e recostou-se à parede. “Eu costumava fumar... Não consigo mais lembrar-me do gosto. Provavelmente me deixaria doente ou algo do tipo. É, provavelmente. Não consigo mais suportar esse seu cheiro.”

     “Sério?” Tom se deu conta de que era uma das primeiras informações reais que descobria sobre Bill. “Foi mal.”

     “Eu costumava ser bem viciado.” Disse o moreno balançando a cabeça como quem não se importa.

     “Oh” foi tudo que o de dreads pôde pensar para falar. Fixou o olhar em Bill, que segurava a boneca firmemente contra o peito. Ele fazia carinho no cabelo do bebê, e pela primeira vez, notou quão usada estava a boneca. Um dos olhos estava permanentemente fechado e a pele estava nojenta. As roupas estavam num estado deplorável, demasiadamente usadas, mas Bill segurava-a como se fosse a única coisa que fazia sentido para ele neste no mundo. Tom perguntava-se se era mesmo verdade.

     “Eu acho,” recomeçou Bill. “Que você deveria parar.”

     “Não dá. É como se fosse a única coisa que me impede de ficar louco.” Disse Tom, encolhendo-se ligeiramente por vergonha. “Quer dizer... Eu gosto muito de fumar.”

     Bill apenas concordou involuntariamente com a cabeça. “Você não pode fumar perto de crianças.”

     Tom grunhiu baixo.

     “O pulmão delas não agüenta. Muito pequeno,” Disse num sussurro. Protegendo a cabeça da boneca com a mão, olhou para o loiro com olhos arregalados. “São incapazes, verdade.”

     “Hey, saia do chão,” Disse Tom. “Tenho de lavá-los.”

     Bill esboçou um sorriso. “Faça-me sair.”

     “Vejo que está usando sapatos hoje,” disse apontando. “Boa escolha.”

     “Nada a ver. Assim que você terminar de lavar o chão, vou ficar de um lado para o outro nos corredores.” Bill disse. “Fiquei meu dia inteiro atrás de você.”

     “Oh, sério?”

     “Você tem namorada?” Perguntou.

     Tom encarou-o surpreso. “Por quê?”

     “Só quero saber.”

     “Ah,” Tom moveu-se desconfortavelmente, ele não sabia por que esse assunto o fez sentir-se tão constrangido. Nunca o tinha feito antes. “É, sim.”

     “Ela é legal?” Bill perguntou virando a cabeça para um dos lados.

     “Ela é bem doce, trabalha num banco,” disse Tom. “Ela vai para a universidade.”

     “Qual a aparência dela?”

     “Baixinha, cabelo castanho. Bem bonita. Nariz fofo. Bunda boa.”

     Bill deixou escapar uma pequena risada. “Peitos?”

     “O suficiente,” Tom respondeu sorrindo “Por quê? Você tem namorada?”

     “Eu tinha.”

     “Oh.” Levantou uma das sobrancelhas. Outra informação. “Quando?”

     “Ano passado... eu acho. Não tenho certeza, eu meio que perdi a noção do tempo depois do primeiro mês aqui.” Disse calmamente. “O nome dela era Heidi... ela era bem legal.”

     “E você terminou com ela, certo?”

     Bill riu novamente, olhando para baixo. “É.”

     Tom apenas sorriu, recostando-se na máquina de lavar. Ele perguntava-se por quanto tempo Bill estava ali, se alguém vinha para visitá-lo... Perguntava-se, mais uma vez, o que tivera acontecido a Bill.

     “Então, você não vai para a universidade?” Bill arrastou-o para fora dos seus pensamentos.

     “O quê? Ah, não,” Tom disse. “Acabei de terminar o ensino médio.”

     “Você é idiota?”

     “Não!” Disse defensivamente.

     “É, você não parece retardado” Disse honestamente, abraçando os joelhos e a boneca.

     “Às vezes eu sou bem idiota.” Tom murmurou.

     “Que nada,” disse, relaxando do aperto e deixando a boneca sentada em seu colo. “Eu não terminei a escola. Quase terminei.”

     “Quantos anos você tem?” Tom perguntou.

     “Dezoito.”

     “Eu também.” Disse surpreso. Bill parecia mais novo, não muito, mas ainda sim mais novo.

     Bill apenas concordou com a cabeça e esfregou os olhos. Quando ele abaixou a mão, esta estava cheia de maquiagem preta. Esfregou no vestidinho da boneca e depois abriu a boca com espanto, colocando a boneca perto do peito novamente e ninando um pouco o bebê.

     “Você está bem?” Perguntou Tom cuidadosamente.

     Bill não respondia, nem mesmo olhou para Tom. Seus olhos estavam vidrados e ele murmurava alguma coisa encarando sua frente. Tom olhava ao redor desesperado. Tinha algumas enfermeiras e alguns funcionários por perto, mas ele e Bill estavam numa esquina distante, quase escondidos nas sombras, ninguém poderia vê-los.

     “Bill?” Disse. Ele abaixou-se tentando entrar no foco da visão do outro, mas Bill encarava algo além. “Hey, Bill.”

     Bill balançava a cabeça e fechava os olhos com força mordendo o lábio. A parte de trás de sua cabeça bateu com força contra a parede algumas vezes e Tom afastou-se franzindo o cenho.

     “Bill, Bill!” Ele sussurrou. “Sai dessa, vamos lá.”

     Ele não podia simplesmente deixá-lo lá, porém, Tom não tinha a menor experiência ou idéia de como lidar com isso. Tudo que sabia nesse lugar era como lavar o chão.

     “Posso te ajudar a voltar para o quarto?” Tom tentou.

     “Po-pode.” Bill gaguejou. “Isso... hm... Eu preciso estar...” Ele olhou para cima e depois para os lados, encarando a enceradeira e arregalando os olhos. “Merda, nós precisamos ir.”

     “Nós?” Tom notou instantaneamente que Bill queria dizer a boneca e ele. “Ah. Ah claro. Deixe-me te ajudar.”

     Bill concordou bem rápido, Tom abaixou-se tocando o braço do outro. Seus olhos finalmente conectados, então Tom viu o pânico instalar-se nos olhos de Bill.

     “Não se preocupe, vai ficar tudo bem,” Tom disse ajudando-o a levantar-se, naquele instante Tom notou que era óbvio a necessidade do moreno naquela boneca, a única coisa que os deixava juntos, e ele sabia que era importante lembrar-se daquilo. “Ela está bem?”

     “Sim” Disse numa voz sumida.

     Tom passou um braço pelos ombros de Bill, que precisou do suporte do outro. Tom caminhou vagarosamente até o quarto e no momento que chegaram lá, Bill já tinha um dos braços agarrados à cintura do loiro e arrastava os pés.

     “Ok,” Tom disse, deixando Bill e assistindo-o com cuidado enquanto ele caminhava até a cama. “Você ficará bem? Eu posso chamar alguém se quiser.”

     “Não,” Respondeu num sussurro. “Não, não. Vo-você pode pe-pegar a mamadeira do Harry?”

     Tom nem parou para pensar, ele sabia que só precisava dar uma boa olhada ao redor do quarto antes de achar a mamadeira. Entregou a Bill que ao pegá-la relaxou visivelmente.

     “Bem me-melhor.” Disse tremendo.

     “O que aconteceu lá fora?”

     Bill virou a cabeça fechando os olhos. “Eu só... perco-me às vezes.”

     Tom não soube porque, mas em vez de ir lavar os corredores ele sentou-se numa cadeira no quarto de Bill pelo resto da tarde.


     Colocando o braço ao redor de Brigitte, Tom puxou-a para mais perto de si sob protestos. Estavam fora de casa, num bar em Berlim, sexta-feira à noite. As pessoas conversavam alto e todos estavam dispersos deixando-se levar após uma longa semana de trabalho.

     Abaixando a cabeça ele beijou sua bochecha, e Brigitte corou, livrando-se dele timidamente.

     “Qual é,” Tom disse sorrindo. “Deixa-me te beijar.”

     Brigitte riu com sarcasmo e acariciou a coxa do namorado. “Você pode fazer tudo o que quiser... mais tarde.”

     Tom gemeu. “Isso não é justo.”

     “É mais que justo...” Ela sorriu, seus olhos faiscaram enquanto ela movia sua mão mais para cima da coxa dele. “Onde está seu amigo?”

     “Oh, Georg.” Tom disse, dando de ombros. Tom e Brigitte estavam para encontrar Georg e Gustav no bar e depois eles sairiam, beberiam, comeriam e jogariam sinuca. Brigitte teve de ser convencida a ir e Tom tinha prometido que iam se divertir. Ele esperava que sim, ao menos.

     “Eu acho que está bom demais, só nós dois.” Brigitte respondeu, finalmente beijando Tom. “Eu meio que gosto de ficar perto de você.”

     “Eu meio que gosto de ficar perto de você também.” Respondeu sorrindo contra os lábios dela.

     “Caham.

     Ambos olharam para onde viera o pigarro. Georg estava parado com um sorriso debochado no rosto e atrás dele outro jovem com mais ou menos a mesma idade.

     “Hey!” Respondeu o de dreads levantando-se. “Fico feliz que tenha vindo.”

     “Ah, sim.” Disse Georg, sentando-se afronte o casal. “Este é o Gustav.”

     “Conheço-te de outro dia” Disse olhando para o loiro.

     Gustav encolheu os ombros. “Foi um dia difícil no quinto andar, estou pronto para ficar bêbado.”

     “Pobrezinho,” Georg disse, reprovando com balanços de cabeça e fazendo sinal para o garçom. “Você deveria ter pedido um pouquinho na cozinha.”

     “Talvez.” Gustav disse desinteressado.

     “Esta é minha namorada, Brigitte.” Tom falou ao sentar-se mais perto da garota e apontá-la aos amigos. “Brige, estes são Georg e Gustav.”

     “Oi” disse envergonhada.

     Gustav sorriu e Georg só confirmou o que tinha acabado de ouvir com a cabeça, ainda chamando o garçom. “O que quer beber?”

     “Ah, nada. Eu que vou dirigir esta noite.” Ela disse a Georg. “Infelizmente.”

     Tom moveu-se desconfortável, alisando as costas dela.

     “Ai merda, esqueça isso.” Georg olhou para Gustav que deu de ombros. “Acho que nós não vamos ficar de porre hoje.”

     “Nunca ficamos.” Protestou Gustav num gemido de desaprovação.

     Brigitte acariciou a mão do namorado. “Mais alguém está com fome? Eu estou faminta.”

     “É, vamos comer.” Gustav respondeu. “Não comi durante todo o dia, estava ocupado demais escondido na lavanderia.”

     “Como foi hoje?” Perguntou o de dreads. Era um de seus dias de folga e ele imaginava o que acontecia quando ele não estava lá.

     Gustav grunhiu novamente, mais alto. “Eu nunca quis que o tempo passasse rapidamente mais do que eu desejo quando estou lá. Caralho, isto é tão constrangedor.”

     “Não acho que seja tão ruim assim,” Respondeu Tom. “O que você tem de fazer lá?”

     “Lavar o chão, janelas, cobertores,” Gustav disse. “Lavar tudo. Estou surpreso por não ter de lavar a bunda dos pacientes.”

     “Eles não são incapazes disso, não é?” Perguntou Brigitte, franzindo o cenho e olhando para Tom.

     “Eles são uns malditos loucos,” Georg riu. “Malditos loucos. Agradeço a Deus por só ter de vê-los por vinte minutos ao dia. Não agüentaria ficar lá em cima o dia inteiro.”

     “O que diabos você fez pra ter de ir lá?” Gustav perguntou a Georg.

     “Estou lá por livre e espontânea vontade.” Georg sorria. “Eu sou o bastardo mais louco daquele lugar, eu acho. Eu posso ir embora quando eu quiser.”

     “Merda” Tom disse, encolhendo-se.

     “Eu acho bem legal,” Brigitte falou para Georg. “Fofo.”

     “Hoje,” Começou Gustav. “Aquela porra louca que só grita o dia inteiro, ela...”

     “Gritou o dia inteiro?” Georg disse.

     Gustav revirou os olhos. “Não, ela pegou meu braço e, maldita, deu um jeito nele. Controlei-me ao máximo para não quebrar o braço dela depois.”

     “Tem um jeito de sair de lá.” Tom comentou.

     “Ainda tenho as marcas no meu braço. Que puta louca.” Gustav continuou.

     “Provavelmente ela estava confusa.” Brigitte tentou argumentar.

     “Eles são todos confusos,” Georg falou alto. “Oh, já viram aquele que passa a manhã inteira perguntando a Kaaren a mesma coisa, de novo e de novo? Alguma coisa sobre o tempo. E aquela pobre criança que teve Alzheimer precoce. Ele só tem vinte e dois anos! Caralho, agora eu estou triste.”

     “Antes eles que nós.” Gustav murmurou.

     Tom espiou Brigitte, ela parecia estar se divertindo. Georg tinha pedido uma rodada de cervejas e eles estavam silenciosamente entretidos com estas por alguns minutos.

     “Ah, e aquele cara que carrega aquela boneca nojenta para todo lado?” Gustav começou.

     Tom tencionou todo o corpo. “Bill?”

     “Não sei o nome dele.”

     “É, Bill!” Georg gargalhou. “Ele é tão doce, fofinho.”

     “Ele é bem agarrado àquela boneca,” Tom sussurrou. “Pergunto-me por quê.”

     “Ele tem TEPT.” Georg disse. “Transtorno de estresse pós-traumático. Bem ruim isso. Eu escutei Kaaren falando... alguma coisa que aconteceu com ele mais ou menos um ano atrás fez com que ele ficasse meio louco.”

     “O que aconteceu?” Ela perguntou com as sobrancelhas enrugadas.

     Georg encolheu os ombros. “Alguma coisa relacionada a um acidente de carro. Foi bem feia a coisa. Muito feia mesmo. Às vezes ele é bem normal, mas de repente ele... muda completamente. Principalmente se ele não toma os remédios. Deus do céu,” ele começou a rir. “Certa vez ele ficou uma semana sem tomá-las no começo do ano. Não parou de gritar nem um segundo até encontrar a boneca.”

     Tom sentiu-se desconfortável, mas ele estava incrivelmente curioso. “Desde quando ele está lá?”

     “Faz mais ou menos um ano.” Georg terminou a cerveja batendo a caneca contra a madeira. Ele começou a rir descontrolado. “Ai Deus, tem algo que eu quero fazer tem muito tempo.”

     “O quê?” Perguntou Gustav curioso.

     “Quero tirar a boneca dele, esconder, algo do tipo. Só para ver o que ele faz.” Georg parou com dificuldade, a cara avermelhada de tanto rir.

     “Malvado!” Brigitte disse, mas ela estava rindo.

     “Ele enlouqueceria,” Tom adicionou. “Ele ficaria muito, mas muito, louco.”

     “Ele me dá arrepios.” Gustav comentou. “Ele é horripilante com aquele cabelo preto e aquela maquiagem. Ele costumava pintar as unhas, mas não faz mais isso, obrigado meu Deus.”

     “Ele é legal.” Tom disse defensivamente. “É, ele é meio assustador e meio louco, mas ele é bem simpático.”

     “É, são todos bem simpáticos” Gustav respondeu. “Não quer dizer que eu quero sair com eles.”

     Tom zangou-se, não queria mais divertir-se daquela forma. Recostou-se e deixou que os outros três conversassem o resto da noite. Ele não se sentia mais por dentro daquilo, então, ele quebrou uma de suas regras e embebedou-se até cair.

     Brigitte estava furiosa com ele, mas ele não estava nem aí mais para ela.

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